O poder e as narrativas
*Ives Gandra da Silva Martins
Uma breve teoria do Poder
Anos atrás escrevi um pequeno livro intitulado “Uma Breve Teoria do Poder”. Hoje está na 4ª edição, veiculado pela Editora Resistência Cultural, que se notabilizou pela primorosa apresentação gráfica de suas edições. As edições anteriores foram prefaciadas por dois saudosos amigos:
Ney Prado, confrade e ex-presidente da Academia
Internacional de Direito e Economia e Antonio Paim, confrade da Academia
Brasileira de Filosofia. A atual tem como prefaciador o ex-presidente da
República e confrade da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Michel
Temer.
Chamo-a de “Breve Teoria” por dedicar-me mais à figura do detentor do poder,
muito embora mencione as diversas correntes filosóficas que analisaram a ânsia
de governar, através da história.
Chamar um estudo de “breve” é comum. Já é mais complicado chamar uma teoria de
breve. As teorias ou são teorias ou não são. Nenhuma teoria é “breve” ou
“longa”, mas apenas teoria. Ocorre que como me dediquei fundamentalmente à
figura do detentor do poder e não a todos os aspectos do poder, decidi, contra
a lógica, chamá-la de “Breve Teoria”.
Desenvolvi no opúsculo a “teoria da sobrevivência”. Quem almeja o poder luta,
por todos os meios, para consegui-lo e, como a história demonstra, quase sempre
sem ética e sem escrúpulos. Não sem razão, Lord Acton dizia, no século XIX, que
“o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”.
Ocorre que, no momento que o poder é alcançado, quem o detém luta para mantê-lo
por meio da construção de narrativas, cada vez tornando-se menos ético e mais
engenhoso,até ser afastado. As narrativas são sempre de mais fácil construção
nas ditaduras, mas são comuns nas democracias e tendem a crescer quando elas
começam a morrer.
A característica maior da narrativa é transformar uma mentira numa verdade e
torná-la para o povo um fato inconteste, ora valorizando fatos irrelevantes,
ora, com criatividade, forjando fatos como, aliás, Hitler conseguiu com a juventude
alemã com a célebre frase: “O amanhã pertence a nós”.
Nas democracias, a luta pelo poder é mais controlada, pois as oposições
desfazem narrativas e os Poderes Judiciários neutros permitem que correções de
rumo ocorram. Mesmo assim, as campanhas para conquistar o poder são destinadas,
não a debater ideias, mas literalmente destruir os adversários. Quando Levitsky
e Ziblatti escreveram “Como as democracias morrem”, embora com um viés
nitidamente a favor do partido democrata, desventraram que as mais estáveis
democracias do mundo também correm risco.
O certo é que, através da história, os que lutam pelo poder e os que querem
mantê-lo, à luz da teoria da sobrevivência, necessitam de narrativas e não da
verdade dos fatos, manipulando-as à sua maneira e semelhança, com
interpretações “pro domo sua” das leis, reescrevendo-as e impondo-as, quanto
mais força tem sobre os órgãos públicos, mesmo nas democracias, e reduzindo a
única arma válida numa democracia, que é a palavra, a sua expressão menor,
quando não a suprimindo.
É que, infelizmente, há uma escassez monumental de estadistas no mundo e um
espantoso excesso de políticos cujo único objetivo é ter o poder e, quando
atingem seu objetivo, terminam servindo-se mais do que servindo ao povo, pois
servir ao povo é apenas um efeito colateral e não obrigatoriamente necessário.
Os ciclos históricos demonstram, todavia, que quando, pela teoria da
sobrevivência os limites do razoável são superados, as reações fazem-se notar,
não havendo “sobrevivência permanente no poder”. As verdades, no tempo,
aparecem, e, perante a história, as narrativas desaparecem e surge “a realidade
nua dos fatos”.
*Ives Gandra da Silva Martins é
professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O
Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme),
Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª
Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin
de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das
Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da
Universidade do Minho (Portugal),
Foto: Andreia Tarelow.