Não existe direito adquirido ao aborto “legal”
*Ives Gandra da Silva
Martins - Raphael Camara Medeiros Parente
A Resolução 2378 do Conselho Federal de Medicina (CFM) de
que foi relator o 2º subscritor,proíbe o procedimento de assistolia fetal em
fetos maiores que 22 semanas por ser método bárbaro de tortura. Tão logo
publicada, militantes do aborto começaram, com argumentos falaciosos, a
tentar revogá-la. Dentre esses argumentos, o tema desse artigo é a
alegação de que o aborto não é punível pelo Código Penal e seria um direito
adquirido, cuja recepção pela Constituição é ainda objeto de reflexão, em face
da clareza do “caput” do artigo 5º da Lei Suprema, que diz ser o direito à vida
inviolável .
Um dos argumentos é que o Código Penal não oferece direitos, pois o direito de
defesa do acusado é assegurado pelo Código de Processo Penal. O que ocorre é
que o aborto não é punível em três situações: risco de morte materna e estupro
pelo Código Penal e, mais recentemente, casos de anencefalia baseado na ADPF 54
e que, em 2012, por decisão do Pretório Excelso, e não do Legislativo, foi
criada uma terceira hipótese de aborto eugênico. Então é preciso diferenciar os
casos de risco de morte materna dos outros dois.
A mulher que comprovadamente corre o
risco de morrer se levar a gravidez adiante tem o direito à saúde previsto no
artigo 196 da Constituição Federal:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação”.
Então é importante deixarmos claro que qualquer mulher que corra risco
substancial de morte, caso leve a gravidez à frente, tem o direito de
interromper sua gravidez. Iremos então abordar nesse artigo as duas situações
que o ordenamento jurídico brasileiro autoriza o procedimento do aborto a ser
realizado somente por médicos: estupro e anencefalia.
Entendemos que mesmo não punível, não há obrigação de realizar-se abortos com
base no desejo de fazê-lo em casos que não sejam de risco de morte da mulher,
principalmente nas hipóteses que envolvam gravidezes com mais de 22 semanas. Os
gestores, a nosso ver, têm a liberdade de não realizarem em seus hospitais, Municípios
e Estados abortos de bebês acima de 22 semanas pelo método de assistolia fetal
nesta hipótese.
As ações no Ministério da Saúde do 2º subscritor, enquanto secretário nacional
de Atenção Primária entre 2020 e 2022 e como conselheiro no Cremerj e CFM
trouxeram à luz diversas questões relacionadas ao aborto que eram omitidas
como, por exemplo, a portaria em 2020 que obrigava a notificação do estupro
seguindo a lei de violência sexual foi alvo de uma ADPF. Somente o Ministério
da Saúde declarou-a inválida, deixando a salvo os estupradores.
O manual do aborto, então redigido em 2022, que proibia
assistolia fetal também foi alvo da ADPF 989, mas se constatou a legalidade
estrita do seu conteúdo. E, mais recentemente, a resoluç&am p;am p;at
ilde;o do CFM da qual foi relator o 2º subscritor, que proibia assistolia fetal
em casos de estupro acima de 22 semanas, infelizmente suspensa pelo STF na ADPF
1141. Estamos agindo para que seja julgada o mais rápido possível para impedir
a morte de bebês viáveis de até nove meses. Enquanto isto, lutamos para que o
Parlamento vote um projeto de lei que é cópia da Resolução do CFM, que pune o
médico que realiza a assistolia fetal. Não apoiamos as ações que colocam penas
nas mulheres maiores que as dos estupradores.
Essas ações trouxeram luz a dois problemas que os que defendem o aborto
escondiam: não se denunciavam os estupros que levavam a esses abortos, se
descumprindo a lei e ninguém imaginava que se matassem bebês de oito e nove
meses sendo que os estupradores raramente eram punidos. Agora, enfrentemos essa
nova questão: existe direito ao aborto baseado na não punibilidade do código
penal? A nosso ver, não!
O Código Penal é apenas um estatuto que, ao lado do processo penal, que garante
o direito de defesa do acusado contra a sociedade e assegura ao condenado a não
ter pena maior do que a estabelecida. Assim sendo, à exceção de postulados
relacionados à execução de pena, direcionados àqueles que estão cumprindo
alguma sanção penal, as leis penais não criam outros direitos e nem geram
obrigações na órbita civil de nossa sociedade. O direito penal existe para
defender bens jurídicos e responsabilizar transgressores. Assim, não ser
punível em determinadas situações não significa que existe um direito ao
aborto.
A situação correlata seria o homicídio em que não há crime quando o agente
pratica o fato: em estado de necessidade; em legítima defesa; em estrito
cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Mas nem por isso
há o direito de matar. E todos os casos são investigados e, ao final, caso
comprovados os requisitos legais, há absolvição. O que deveria ocorrer nos
casos de aborto com excludentes de punibilidade para os médicos.
A mídia e os defensores do aborto, por meio da insistência
em repetir essa falácia, fizeram todos acreditarem que há um direito natural em
realizar o aborto quando apenas não é punível, exigindo de médicos e gestores
que o realizem para quem queira, mesmo sem risco de morte materna. Inclusive
ameaçando e intimidando, por meio de ações judiciais, os médicos a procederem o
homicídio uterino.
Caso recente é o da Prefeitura de São Paulo que optou por fechar serviços de
aborto “legal” e é denunciada diariamente pela mídia de que está restringindo
direitos. Não há esse direito previsto em nenhuma lei ou na Constituição
Federal. A nosso ver, é absolutamente lícito que o gestor se negue a
disponibilizar serviços para realização de abortos, salvo, obviamente, os de
risco de morte materna.
Mesmo o direito do médico não realizar o aborto baseado na
objeção de consciência já vem sendo questionado, inclusive por meio de projetos
de lei propostospelo PSOL. Nosso entendimento legal evitaria esse absurdo que é
o de matar bebês de oito e nove meses por meio da assistolia fetal. Temos
certeza que em caso de sedimentação desta inteligência,os gestores deixariam de
medo da prisão, praticamente não haveria serviços realizando essa barbárie.
A situação de fetos anencefálicos também merece uma discussão mais aprofundada.
Embora o STF tenha decidido que o aborto pode ser realizado nesses casos com a
ADPF 54, legislando em lugar do Congresso para acrescentar uma terceira
hipóteses de aborto não punível, o eugênico, é importante esclarecer que a
decisão foi no sentido de não entender o bebê anencefálico como ser vivo, já
que o conceito de vida é baseado na atividade cerebral. Não tendo cérebro, não
há vida. Portanto, não haveria que se falar em aborto. Embora discordemos, isso
é irrelevante já que a última palavra é a do Supremo.
Essa quest&a mp;a mp;a tilde;o, todavia, é importante porque o Judiciário utiliza a ADPF 54 para legitimar toda sorte de abortos baseados numa suposta incompatibilidade com a vida pós o nascimento, inclusive, englobando situações totalmente compatíveis com a vida extrauterina. O mais estranho, porém, é que a decisão do STF na ADPF 54 foi de avaliação do bebê na gravidez e não após o nascimento. Se não há cérebro não há vida. O Judiciário então passou, muitas vezes, a decidir que em casos supostamente sem possibilidade de vida após o nascimento poder-se-ia fazer o aborto. Não conseguimos ver qualquer relação entre essas decisões e a ADPF 54. Seria como se autorizasse matar pessoas em situações não previstas.
Situações já autorizadas para realização de aborto baseadas
na ADPF 54 incluem: síndrome de Patau (trissomia do cromossomo 13 que leva a
uma malformação com comprometimento do sistema nervoso central, face, órgãos e
membros), síndrome de Edwards (trissomia do 18 com retardo no crescimento
fetal, associado à sobreposição dos dedos das mãos e anormalidades cardíacas e
craniofaciais), síndrome de body stalk (malformação fetal grave decorrente da
falha da formação das dobras cefálica, caudal e laterais do corpo embrionário),
acrania fetal (ausência do crânio), gastrosquise (malformação cong& amp;
amp; ecirc;nita da parede abdominal, ocasionando exposição de estruturas
intra-abdominais, em especial o intestino fetal) e muitas outras. Além de
situações que foram tidas como risco de morte materna baseadas até em questões
psicológicas e psiquiátricas. Nada disso tem qualquer amparo legal.
Esta invasão de competência do Legislativo provoca decisões que produzem mortes
de bebês. Além do mais, muitas dessas situações tidas como incompatíveis com a
vida fora do útero não são reais. A própria definição de incompatível com a
vida significa que mais de 90% morrem no período de um ano após o nascimento.
Mas 90% está muito longe de ser a totalidade quando se trata
de vida. Há caso documentado de sobrevivência com síndrome de Patau com dez
anos de sobrevida e na de Edwards, chegando inclusive à adolescência. Sim, são
casos raros, a maioria morre nos primeiros dias de vida, todavia, esses casos,
mesmo que raros, inutilizam a premissa de serem doenças incompatíveis com a
vida. A gastrosquise caso se consig a êxito na cirurgia para correção pode ter
sobrevida normal.
Por todos esses dados apresentados, concluímos que não existe um direito ao
aborto, nos casos de estupros, de bebês acima de 22 semanas. Embora o médico
que o fizer enquanto a Resolução do CFM estiver suspensa pelo STF não possa ser
punido. Não existe, também, obrigatoriedade que o gestor disponibilize esse
método para quem o solicite. Esse tema deve ser melhor estudado por juristas e
médicos para se chegar a um entendimento após amplo debate.
*Ives Gandra da Silva Martins
- Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do
CIEE/O ESTADO DE SÃO PAULO, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército -
ECEME, Superior de Guerra - ESG e da Magistratura do Tribunal Regional Federal
– 1ª Região; Professor Honorário das Universidades Austral (Argentina), San
Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia); Doutor Honoris Causa das
Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs-Paraná e RS, e
Catedrático da Universidade do Minho (Portugal); Presidente do Conselho
Superior de Direito da FECOMERCI O - SP; ex-Presidente da Academia Paulista de
Letras-APL e do Instituto dos Advogados de São Paulo-IASP
*Raphael Camara Medeiros Parente -
Conselheiro Federal de Medicina pelo Rio de Janeiro e relator da resolução do
CFM que proíbe assistolia fetal e ex-secretário de Atenção Primária do
Ministério da Saúde de 2020-22.
Foto Professor Ives Gandra: Andreia Tarelow - Dr. Raphael Camara Medeiros Parente – Internet.