Sexta-feira, 29 mar 2024
 
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Sobre vacinas, direitos individuais e direito à vida

(Foto: Saúde/Estadão)

Há dois séculos, por volta de 1796, Edward Jenner, observando que quem adquire a varíola bovina, ficava imune as formas graves da varíola humana, criou a primeira vacina.

Com isso seria possível controlar uma doença altamente contagiosa e que dizimou milhões de vidas na Europa e posteriormente nas Américas onde os europeus fizeram a primeira guerra bacteriológica do mundo. Deixavam roupas e objetos contaminados para que fossem pegos pelos nativos, contaminando as tribos e facilitando a invasão.

Passado mais de um século desde a primeira vacinação, o então presidente Rodrigues Alves, junto com seu Ministro da Saúde Oswaldo Cruz e com o prefeito Pereira Passos, resolveram sanear o Rio de Janeiro, com um porto evitado por navios de muitas bandeiras, dada a suas condições precárias de saúde da cidade cheia de casos de febre-amarela, peste bubônica e varíola.

Foi decretada a vacinação obrigatória e isso gerou a famosa revolta da vacina que, em novembro de 1904, quase derrubou o governo. O lema na época era “morra a polícia e abaixo a vacina” e contou com um movimento chamado de “liga contra a vacina obrigatória”. O decreto caiu e o último caso de varíola no Brasil foi registrado em 1971 e a doença foi considerada erradicada no mundo em 1980.

Voltando para os dias de hoje, em outubro de 2020, o número de mortos pela Covid19 no Brasil ultrapassa 150.000 e os do mundo 1.115.000. Nesse instante há várias vacinas sendo estudadas, assim como proliferam numa velocidade espantosa as teorias conspiratórias a respeito de todas elas.

O desenvolvimento de vacinas no nível de segurança atual é complexo, com vários testes sobre a segurança e eficácia respeitando normas comuns a agências reguladoras como o FDA Americano, Agência Europeia e nossa Anvisa. O que talvez as pessoas não percebam é que enquanto alguns vírus, como a febre-amarela, têm vacinas altamente eficazes e que duram para a vida toda, outros estão longe de ter uma vacina adequada.

Existe um grande arsenal de medicamentos contra o vírus HIV, mas nenhuma vacina eficaz até o momento. Num exemplo menos drástico, o vírus sincicial respiratório, que pode causar quadros gravíssimos em crianças com menos de um ano e em pacientes transplantados, não tem até hoje uma vacina com segurança e eficácia adequada, mesmo considerando o imenso investimento já feito.

Para entender o que acontece é preciso conhecer um pouco de imunologia. Algumas vacinas são variantes atenuadas dos vírus, que não produzem a doença, mas produzem uma resposta imune e assim quando o vírus real aparece, o sistema imune facilmente o reconhece.

As mais modernas, produzidas por técnicas de engenharia genética, podem usar fragmentos do vírus, ou mesmo colocar fragmentos de um vírus numa “capa” de outro vírus menos letal.

No caso da atual Covid19, demos um pouco de “sorte”. Imagine, por exemplo, se uma variante muito mais agressiva do vírus sincicial respiratório surgisse afetando pessoas mais velhas tal qual afeta lactentes. Teríamos um desastre de proporções igualmente épicas ou até piores.

Felizmente as tecnologias já disponíveis puderam ser adaptadas às características biológicas do vírus Sars-Cov-2, permitindo o desenvolvimento rápido de vacinas em poucos meses.

Nesse momento, em que podemos estar próximos de controlar essa pandemia que tantas vidas levou, tanto estrago fez e fará na economia mundial, no tratamento de outras doenças, ressuscita depois de 116 anos a “liga contra a vacina obrigatória”.

Sob o pretexto de se colocar como defensores da democracia, da constituição e dos direitos, essa “liga” afirma que cada um pode decidir se vacinar ou não, pois isso é um “direito individual assegurado pela constituição”. Talvez falte a essa “liga” um pouco mais de conhecimento de como as vacinas funcionam.

Em primeiro lugar, nem a melhor das vacinas tem 100% de eficácia, ou seja, mesmo quem se vacinou não tem garantias absolutas de que ficará imune, logo, para que uma doença seja controlada é preciso que uma proporção grande da população esteja imune.

Há outras pessoas que, contra sua vontade, têm imunodeficiências, câncer, fazem transplante de órgãos ou tomam imunossupressores para controlar doenças reumatológicas. Assim, quem não se vacina, assume o risco de contrair a doença (o que é um direito privado), mas também coloca em risco toda uma comunidade e mesmo a vida de quem ele não conhece, ou seja, atenta contra toda a sociedade.

É direito individual ter maior risco de adoecer e quem quiser pode fumar ou beber até cair e mesmo em alguns países também pode usar maconha sem cometer nenhum crime. Você também pode se recusar a tomar seu anti-hipertensivo e optar por ter menos anos de vida, mas o erro de quem imagina o direito “democrático” de não se vacinar é assumir que não existem populações de risco, impossibilitadas de receber vacinas ou nas quais as mesmas não funcionam.

Para uma vacina ter sucesso é fundamental que o maior número possível de indivíduos esteja imunizado. Vacinação é um esforço coletivo, sem adesão maciça da população ela não funciona adequadamente.

Encerro com uma história mais ou menos real, cujos dados não são exatos para preservar a privacidade das pessoas e locais. Uma criança tratando uma leucemia, recebeu a visita de um primo, e sua tia, defensora do “direito” de não vacinar, jamais administrou qualquer vacina ao filho, mas sempre omitiu isso de todos.

Essa mesma criança com leucemia tinha uma internação programada no dia seguinte e passou pela sala de recreação do hospital onde encontrou outros colegas em tratamento. O primo começou com febre no dia seguinte, mas só depois de alguns dias foi diagnosticado seu sarampo.

No hospital, outras oito crianças contraíram sarampo, trazido involuntariamente pelo primeiro contato. Nesse total de nove casos, um faleceu e sete tiveram seu tratamento atrasado ou reduzido, com consequências futuras imprevisíveis.

Colocar a vida de inocentes intencionalmente sob risco não é algo garantido por nenhuma constituição. É tempo de salvar vidas e não de ressuscitar discussões mortas há mais de um século.

Cláudio Galvão de Castro Junior - Resumo do Perfil:

Cláudio Galvão, é médico Hematologista, faz transplante de medula óssea e oncologia pediátrica e é Presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica (SOBOPE). Queria ser piloto da Varig e até chegou a pilotar aviões. Depois fez física, mas parou e finalmente concluiu o curso de medicina. O gosto por aviação e por divagações acerca de números e da física teórica nunca o abandonou.