Quinta-feira, 28 mar 2024
 
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Cannabis medicinal, a bola da vez

Na década de 60, Rafael Mechoulam foi responsável pela descoberta do chamado sistema endocanabinoíde no corpo humano. Trata-se de um conjunto de receptores e enzimas que trabalham como sinalizadores entre nossas células e os processos do corpo.

Os endocanabinoídes e seus receptores se encontram espalhados por todo o organismo, em membranas celulares do cérebro, órgãos, tecidos conjuntivos, glândulas e células do sistema imunológico. O óleo de Cannabis dialoga com este sistema, o que coloca a maconha, ou cânhamo, ou Cannabis no centro das discussões médicas e de saúde em âmbito mundial.

A Cannabis medicinal já é realidade na Europa e Estados Unidos. No Brasil o acesso ainda é restrito a poucos pacientes A classe médica vem aos poucos tomando consciência do potencial curativo e das aplicações da Cannabis para tratamentos de inúmeras enfermidades e prescreve cada vez mais e melhor.

Atualmente, o paciente que recebe uma prescrição médica poderá adquirir o medicamento em uma drogaria brasileira, a um custo médio de R$ 2.500 ao mês, desde que a dose, concentração e posologia prescritas coincidam com os medicamentos disponíveis no mercado. Alternativamente, pacientes podem recorrer à chamada importação direta por pessoa física, no campo do uso compassivo, regulamentada pela ANVISA através da RDC 355/2020, que exige anuência prévia da Agência.

O paciente pode ainda se socorrer de associações de pacientes, que possuem autorização judicial para plantio e extração de derivados de Cannabis, como a Abrace Esperança, de Joao Pessoa.

Não raro o custo do tratamento é proibitivo, de forma que muitos acionam judicialmente o Sistema Único de Saúde, obrigando que o Estado custeie o acesso à Cannabis medicinal com prescrição médica, fundamentadas no art. 196 da Constituição Federal. Dados da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo dão conta de que quase R$ 9 milhões foram gastos em 2019 com o atendimento das demandas judiciais, o que inspira preocupação dos governos com o equilíbrio das contas públicas de saúde.

Em 2019, a Anvisa aprovou um regulamento excepcional para obtenção de autorização sanitária de produtos derivados de Cannabis, a RDC 327. O processo de regularização foi simplificado, abrindo caminho para que indústrias e importadoras de medicamentos acabados possam regularizar seus produtos.

No entanto a norma reflete o preconceito que existe contra a planta, cuidadosamente plantado no imaginário popular e social desde a década de 60, quando o governo Nixon declarou ac chamada “guerra as drogas”, incluindo cannabis na lista de entorpecentes proscritos.

A ANVISA afirma que os derivados de cannabis regulados pela novel RDC 327 não são medicamentos, mesmo que claramente estejam inseridos no contexto regulatório dos remédios fitoterápicos. Estabelece ainda regras excepcionais para prescrição, que permitem ao médico receitar apenas em último caso, quando todos os outros tratamentos falharem, ainda que a matéria seja da seara do Conselho de Medicina.

No mesmo esteio, a ANVISA proíbe terminantemente que farmácias de manipulação venham a operar com ativos derivados da cannabis, restrição que não encontra sentido, sob o ponto de vista técnico ou regulatório.

Isso porque as cerca de 7,7 mil farmácias magistrais espalhadas pelo Brasil atuam com assistência de farmacêuticos responsáveis em tempo integral, e detém avançada expertise, necessária para lidar com medicamentos derivados de plantas, os chamados fitoterápicos, entregando eficácia, padronização e controle de qualidade, o que não necessariamente se observa nos produtos fornecidos pelas associações de plantio e extração.

Ademais, já se sabe que a individualização do tratamento é crucial para o sucesso terapêutico e adesão do paciente ao tratamento. Muitos não se adaptam apenas com CBD (Canabidiol) isolado, e precisam ser tratados com doses de THC (Tetrahidrocanabidiol), ativo que responde pela sensação psicoativa da planta.

Juntos, os ativos presentes na maconha produzem o chamado efeito comitiva, ou seja, atuam como uma equipe, para entregar o resultado de melhora no quadro clinico dos pacientes. Mesmo assim a indústria farmaceutica geralmente opta por operar com moléculas isoladas, apenas pela chance de obter proteção patentária, o que conferiria exclusividade para exploração comercial da droga, o que não pode ocorrer quando se tratam de plantas, que se encontram na natureza.

Já se sabe que a individualização do tratamento é crucial para o sucesso terapêutico e adesão do paciente ao tratamento. Muitos não se adaptam apenas com CBD (Canabidiol) isolado, e precisam ser tratados com doses de THC (Tetrahidrocanabidiol), ativo que responde pela resposta psicoativa da maconha.  Juntos, os ativos presentes na planta produzem o chamado efeito comitiva, ou seja, atuam como uma equipe, para entregar o resultado de melhora no quadro clinico dos pacientes.

Uma iniciativa pioneira no Brasil é a FARMACANN, associação de farmácias de manipulação pelo acesso à cannabis medicinal, fundada por um grupo de farmacêuticos magistrais de vários estados. A FARMACANN pretende ampliar a oferta de tratamentos eficazes, seguros, adequados, e financeiramente viáveis, assim como já fazem diversas entidades civis sem fins lucrativos, a exemplo das chamadas associações de pacientes que se dedicam ao plantio e extração.

O canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabidiol (THC) hoje constam da lista de insumos autorizados pela Anvisa, a Portaria SNVS MS (Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde) nº 344/98, que é usada para orientar a política nacional antidrogas no pais e define por critérios técnicos quais drogas são especialmente controladas ou proibidas no país.

Em Brasília, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 399/15, um aglutinado de diversas proposições sobre o tema, sob relatoria de Paulo Teixeira (PT SP). O projeto deveria ter seguido para votação em 2020, mas a pandemia inverteu as prioridades e pautas, e por ora não há perspectiva concreta de aprovação. Caso a proposição se converta em Lei, a expectativa é de que a Cannabis possa ser plantada, extraída, estudada, e seus sub produtos utilizados para inúmeras aplicações. Para além da medicamentosa, o cânhamo ou hemp possui potencial de utilização na indústria têxtil, por exemplo, para fabricação desde calcados até paraquedas.

Estudos dão conta de que a faixa meridional do território brasileiro é bastante adequada para o plantio de Cannabis e que o pais teria potencial de ser o principal produtor mundial, fazendo frente a Colômbia e ao Canadá, por exemplo. A planta tem sido vista em outros países como alternativa para driblar a crise econômica provocada pela pandemia da Covid-19.

Pacientes não têm tempo, a população não pode mais esperar. É preciso desconstruir o preconceito e dialogar ostensiva e urgentemente sobre a aprovação da Cannabis medicinal no Brasil, em todas as suas formas, manipulada ou industrializada, para cosméticos e para suplementos nutricionais, ampliando o acesso da população brasileira a tratamentos de saúde seguros e eficazes.

Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA/FGV em Gestão de Serviços em Saúde, fundadora e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) entre 2013 e 2018, especialista em Telemedicina e Proteção de Dados e diretora jurídica da ABCIS.

Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1994 na área de Vigilância Sanitária e Assuntos Regulatórios, sócia fundadora da De Lucca Mano, sócia Fundadora do Congresso Pharmashare e fundadora da Farmacann.