Quinta-feira, 28 mar 2024
 
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A imprescritibilidade e "O Processo"

Amadeu Garrido de Paula é Advogado, sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados

Cogitamos da imprescritibilidade das ações judiciais do Estado, em se tratando de reparação de danos por ato de improbidade administrativa, recentemente pronunciada pelo STF. E de uma monumental obra literária do mundo, de Frans Kafka, somente publicada porque desobedecido seu testamento.

Trata a obra da insensibilidade da Justiça Oficial e do destino humano sempre voltado à condenação. O acusado, que recebe intimações e citações constantes, comparece a becos de tetos baixos da Justiça de seu tempo, sem saber do que é acusado.

Claro que é um símbolo, mas os símbolos e os arquétipos trespassam as eras e, em muitos momentos, estão presentes em fatos que ocorrem depois de gerações.

O Ministro Marco Aurélio Mello expressou que não cabia em sua consciência jurídica a imprescritibilidade de ações patrimoniais. Entretanto, não lançou todas as luzes sobre o palco da Suprema Corte; haveria que ser dito que o dever de indenizar é transmissível a herdeiros e sucessores, em regra às futuras gerações. É da essência do direito obrigacional e está expresso na lei de improbidade administrativa.

É certo que não devemos admitir um único ato de corrupção. Entretanto, a prescritibilidade, em cinco anos, tal como ocorre quando o particular está na circunstância de processar o Estado, não é sinônimo de impunidade.

Ao contrário impõe aos órgãos acusadores o dever de não ser negligente e, a partir da ciência do fato prejudicial ao erário, agir em cinco anos. Ante a imprescritibilidade, esse dever se dilui. O agir condiz com a eternidade. Ora, se fôssemos eternos, adiaríamos todas as nossas ações. Provavelmente não estaria a escrever este texto. A finitude é que dá o sentido e o colorido da vida e das condutas animais, racionais e irracionais.

Tal como ficou a decisão do STF e o aval concedido à negligência dos órgãos acusadores, talvez o erário jamais seja ressarcido. Atacou-se o envenenamento com o próprio veneno, em dose cavalar, não homeopática.

Imaginemos um ser que nasce carregando nos ombros não apenas o pecado original, mas também um possível dever de ser demandado, neste mundo, em ação de improbidade. Vem à luz deste planeta já destinado a sofrer um processo. Talvez não o sofra - talvez - isto está rigorosamente inserido no universo "imaginário" de Frans Kafka.

Obviamente, como disse o Relator, Ministro Alexandre de Morais, o passar do tempo tritura a capacidade de ampla defesa, em detrimento da garantia fundamental do devido processo legal. Os documentos de defesa provavelmente foram incinerados pelo pai - ou pelo avô; circunstâncias do fato não chegam ao conhecimento da família e do acusado, porque é sempre constrangedor.

Ficará apenas a alegação da Administração Pública, que, num momento longínquo do tempo - sabe-se lá por que - resolveu processar um homem que jamais poderia esperar esse processo.

Desabam as bases existenciais do "réu". Não sabe se deve maldizer seu ascendente ou o Estado inimigo. Nenhuma das outras Constituições do mundo prevê o absurdo. Dificilmente haverá possibilidade de o Supremo modificar sua posição, aliás, já modificada e fragilizada durante o julgamento, na retratação do Ministro Luis Fux e Roberto Barroso, que parecem ter-se rendido às alegações da Procuradora Raquel Dodge, por sua vez movidas pelo hábito acusador, incriterioso e abençoado pelo clamor popular.

Se este for o impulsionar do direito, podemos cerrar as portas dos cursos jurídicos e remeter tudo aos Tribunais leigos, instalados nas praças públicas.