Sexta-feira, 19 abril 2024
 
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Artigo: A esquerda dos artistas

O que é e para onde vai a esquerda no Brasil? A pergunta se faz pertinente por conta do midiático posicionamento de cantores, compositores, atrizes que, se dizendo de esquerda, fazem loas a Lula e Dilma, perorando contra o golpe desferido pela direita. A era petista levou o Brasil à maior recessão econômica de sua história. Alguns dos artistas que fazem barulho, porém, continuam a sonhar com a volta de Lula, enxergando nele a “Salvação da Pátria”. Afinal, que esquerda é essa?

Primeiro, vale lembrar que a esquerda frequenta mais a boca de artistas que o aparelho fonador de políticos. É fato que o PT continua a desfraldar a bandeira do socialismo, mas perdeu vigor nessa toada, a partir do momento em que entrou no pelotão da bandalheira. O espaço de esquerda passou a ser ocupado pelo PSOL, cujo discurso se afina ao surrado refrão da luta de classes e combate ao capitalismo. Ser de esquerda é charme para certos artistas.

Nas últimas três décadas, formou-se nova argamassa para ajustar estacas do alquebrado socialismo revolucionário com ti¬jolos do liberalismo político e econômico.

O fato é que a meta do sistema é convergir a eficiência econô¬mica com o bem-estar social, ao que se deu o nome de socialdemocracia. Essa marca chegou ao Brasil em fins dos anos 1980, endossada inicialmente pelo PSDB num texto de seus ideólogos, Os desafios do Brasil. Por tentativa e erro, nosso arremedo socialdemocrata entrou no terceiro milênio, ganhou o centro do po¬der e foi acusado de se curvar ao Consenso de Washington. De onde partiu a crítica? Do PT e seus satélites. De tanto bater, as “esquerdas” alcançaram a alforria e chegaram ao Palácio do Planal¬to em 2003 com a eleição de Lula.

Com o “mensalão”, soçobraram as pilastras leninistas e o teto marxista. As bandeiras vermelhas do petismo ficaram borradas de lama e de vergonha. Muitos atores se nivelaram na sujeira da corrupção. Sob o lamaçal, que matiz de esquerda se pode distinguir? Apenas traços indistintos e pequenos sinais de uma ou outra sigla nanica de entonação trotskista. O PSOL está bem na fita. Até o PC do B escapa da modelagem esquerdista.

O ciclo Dilma jogou o país no profundo buraco da recessão e do desemprego, selando o fim de refrãos socialistas. CUT e MST ainda tentam elevar ao alto suas bandeiras, mas se frustram com plateias escassas. No momento em que o Brasil alcança uma Selic de 7%, o menor juro da história, uma inflação abaixo dos 3% anuais, a volta do emprego, o que se vê na paisagem? A tentativa de alguns de transformar o verso em reverso. E o engodo grassa. Lula propaga que belos foram os tempos em que ele e Dilma fizeram do Brasil um paraíso. Os artistas entoam esse hino.

Por que a classe artística glorifica o ciclo lulopetista? Primeiro, ser esquerdista parece charmoso para muitos. Segundo, Lula é o ícone da dinâmica social no Brasil, condição que serve para encobrir a lama do mensalão e de escândalos que enfrenta na justiça. Já Dilma “foi apeada do poder por um golpe”, tendo assumido um “vice” que nunca teve um voto, esquecendo que ele obteve o mesmo número de votos da ex-presidente.

Afinal, o PT ainda é de esquerda? Vejamos. A partir dos anos 70 a 80, os partidos socialdemocratas passaram a incorpo¬rar princípios neoliberais, puxando a ideologia dominante da União Europeia. A doutrina socialdemocrata ganhou contornos na esteira da globalização. Siglas mudaram, trans-formando suas bases trabalhadoras em classes médias, mais conservadoras e com maior acesso ao capital financeiro. Angela Merkel, na Ale¬manha, por exemplo, deu efetiva contribuição para moldar a socialdemocracia com a solda neoliberal. O Brasil ingressou na rota. Importantes figuras do nosso universo artístico, porém, teimam em fechar os olhos à nova realidade, apostando na tese de que bom, mesmo, era o Brasil que até ontem respirava por aparelhos.

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato